Diário – Dia 72586

Há quanto tempo escrevo diários? Por que eu os mantenho? Eu acho que não consigo nem mesmo contar quantos anos são.

Eu venho escrevendo nestes diários todo dia, eu acho... Eu já não sei onde os dias, ou as noites, começam ou terminam. Recolho-me ao meu próprio buraco quando vejo o céu noturno começar a alcançar tons roxeados; fujo como uma covarde.

Mas não sei dizer por quanto tempo durmo, pois apenas no sono encontro paz. Morpheus me abraça como uma criança perdida, e desejo jamais deixar seus braços. Porém, sou amaldiçoada a abrir meus olhos novamente e, todas as vezes que o faço, o mundo parece diferente. Ele soa diferente, ele cheira diferente; até mesmo o tintilar das folhas parece mudar de tom. O mundo poderia mudar tanto em apenas um dia?


Estou aqui, nesta maldita cabana perdida no meio do nada, abandonada há sei lá quantos séculos. Não sei quando foi a última vez que vi um humano ou sequer um animal rondar esta cabana.

Ela fede: mofo, morte. Nem mesmo o frescor da floresta que a rodeia é capaz de aliviar o maldito cheiro deste lugar.

Na última vez que acordei – não hoje, mas na noite anterior –, precisei cavar mais do que apenas a terra de cima de mim. Precisei tirar os escombros da estrutura que sucumbiram. Eu deveria ter ficado abaixo deles. Por que este meu corpo precisa ser tão resistente? Por que não morri com o desabamento como qualquer humano morreria?

Agora esta cabana miserável não tem mais teto e apenas metade das paredes restaram. Toda a estrutura está tomada por musgo, por mato. As raízes das árvores pouco a pouco ultrapassam as poucas paredes que ainda permanecem de pé.

Sinto cheiro de chuva. Os céus não são nada além de uma espessa camada de nuvens; vai chover em breve. Preciso proteger meus diários.

Eu não sei dizer as razões, mas eu quero que esses cadernos sobrevivam. Eu tenho centenas deles. Eu não pretendo viver por mais tempo, eu não sei se quero passar dessa noite.

Vocês, meus diários, foram minha única companhia. Em vocês eu salvo todas as minhas memórias e foi graças as palavras escritas que eu não enlouqueci. Digo, pelo menos eu acredito não ter enlouquecido, não ainda.

Quero salvar essas memórias. Talvez, um dia, alguém no futuro ache esses diários e os leia. Essa pessoa vai achar essas pequenas partes de mim que se manteve sóbria perante a loucura da imortalidade. Talvez essa pessoa me ame, se apaixone por estas memórias e pelo fantasma que deixei nesta terra. Eu serei a heroína de sua história.

Não, Eris, que ideia idiota! Como alguém poderia amá-la? Nem mesmo quem fez isso com você foi capaz de amá-la, como você acha que um completo desconhecido a amaria?

Ainda lembro daquela noite. Era a noite anterior ao meu casamento. Eu, de todas as pessoas, me casaria com um rei. Tornar-me-ia rainha, mas não queria isso. Eu estava sendo obrigada. Minha família, que há tantas gerações subia socialmente, agora finalmente teria seu sangue entre a realeza. Mas o que eu queria? Não sei responder essa pergunta, mas tenho certeza de que desejava muito mais do que um casamento arranjado com um velho decrépito.

Clamei por ajuda, então você veio. Eu não vi seu rosto, mas eu senti seu cheiro, seu toque frio. Seus lábios em meu pescoço e as duas agulhas que eram suas presas que invadiram meu corpo antes mesmo que eu pudesse me dar conta do que estava acontecendo.

Você me deu a maior das dores, seguida do maior dos prazeres. Ainda lembro do sangue em minha boca e, então, em minhas veias, transformando cada centímetro do meu ser ao mesmo tempo que matava quem eu era antes. Eu queria que você parasse na mesma proporção que queria que você continuasse. Meu coração não era mais meu. Ele pertencia à noite, ele pertencia à escuridão, ele pertencia à eternidade.

Quando acordei, sabia que não era mais a mesma, e tinha sede. Uma sede incontrolável que fazia de mim um animal selvagem. Quando voltei para casa, todos estavam desesperados à minha procura. Achavam que eu tinha fugido. Aquele reizinho apareceu no meio do tumulto e me deu um tapa. Falou que eu não tinha o direito de fazer o que bem entendesse, e mais um monte de balela sobre me manter sob vigia. O ódio crescia em mim junto com a sede. Eu apaguei. Quando voltei à consciência, estavam todos mortos aos meus pés, e eu estava incrivelmente satisfeita. A sede havia ido embora.

Então eu fugi daquele lugar, nunca mais olhei para trás. Queria respostas e eu não queria estar sozinha, eu chamei por você mas você nunca veio.

E estive sozinha desde então, precisei aprender sem ninguém me guiando. Vi muitos que pareciam ser como eu, ouvi o chamado de alguns deles, mas não queria me aproximar, por que o faria? Para eles me deixarem sozinha no final?

Eu sei que a solidão é a única garantia que eu tenho nessa existência porque é a única que esteve comigo desde o começo. Por que eu me aproximaria de outros como eu? Para eles também me darem esperança e então me deixarem sozinha?

Não sou capaz de ser amada. Eu sei disso. Estou plenamente ciente disso. Se nem quando eu nasci eu fui amada, por que agora que eu sou um monstro seria? Eu não crio ilusões de que isso um dia será possível.

Mas essa solidão acaba esta noite.

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Voltei!

Estive explorando a floresta e encontrei uma caverna ao norte daqui. Deixei meus diários lá, dentro daquela caixa metálica que encontrei no rio há alguns dias. Eles vão sobreviver e, quem sabe, um dia serão encontrados. Exceto você, meu pequeno e último diário. Sinto muito, mas você virá comigo. Preciso ter um lugar para escrever minhas palavras. Quero estar consciente até o último minuto.

Estou com sede. Não consigo me lembrar da última vez que me alimentei. Uma semana? Um mês? Um ano? Um século?

Antes, eu tinha prazer no ato de me alimentar. O sabor, as memórias que vêm junto... tudo isso me colocava em alguma espécie de êxtase. Mas agora, é só mais uma experiência dolorosa. As memórias me lembram de coisas que jamais serei capaz de viver. Os olhos deles, das minhas vítimas, cheios de medo e ódio... Sei que estou tirando deles tudo, enquanto me torno mais forte.

A sede está crescendo dentro de mim. Minha visão está ficando cada vez mais embaçada. Minha barriga dói tanto que parece que algo a atravessou. Sei que não falta muito para eu perder a racionalidade e virar de novo um animal irracional. Preciso terminar com tudo antes.

Aprendi que, se me concentrar em um ponto específico e deixar meus olhos esquentarem, consigo fazer com que aquele ponto entre em chamas. Esta cabana já está com folhas secas o suficiente para deixar que as chamas se alastrem. Irônico: vou usar meu próprio poder que me atormenta para finalmente poder descansar.

Está feito! As chamas me rodeiam. Sinto o calor queimando minha pele, as bordas deste diário já estão chamuscadas. Oh, chamas que dançam, envolvam-me e abençoem-me com seu poder destrutivo.

Acho que este é meu último parágrafo. Bem à minha frente, em meio as chamas, surgiu uma imagem. Uma enorme imagem. Deve ter 5 metros ou mais. Possui um corpo que parece humano, feminino, mas é inteiramente formado pelas chamas. No que parece seu rosto, possui duas orbes vermelhas, brilhantes, como dois rubis. De sua cabeça, chamas partem formando algo que parecem chifres. E de suas costas, estão se projetando enormes asas, também compostas pelas chamas. Suas asas são tão grandes que, se as esticar o suficiente, tenho certeza de que podem abraçar o mundo inteiro.

Não tenho dúvidas: é o anjo da morte.

Oh, belo e reluzente anjo! Abrace-me e leve-me para o descanso eterno.


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