Eu... sobrevivi. Eu ainda estou sem acreditar no que aconteceu. Vou tentar descrever tudo.
Aquela enorme criatura de chamas apareceu diante de mim, e tudo se apagou logo em seguida. Eu achei que finalmente havia fechado os olhos para sempre. Mas... aqui estou eu, escrevendo em um diário todo chamuscado mais um dia.
Em algum momento, eu voltei a recobrar minha consciência. Primeiro, eu senti algo gelado percorrer meu corpo. A sensação era gostosa. Minha pele estava ardida e terrivelmente dolorosa, mas aquela coisa gelada parecia trazer alívio para a sensação.
Era água. Eu estava dentro de um rio. A água era fresca e limpa, as pedras em minhas costas pareciam ter sido propositalmente colocadas para me acomodar como uma cama.
Eu abri os olhos. Eu não estava no rio que conhecia, próximo à cabana. Estava dentro de uma caverna, profunda; eu não conseguia nem mesmo ouvir o vento do lado de fora no ponto em que estávamos.
Sentar-me foi uma tarefa ainda mais dolorida. Eu estava com a pele completamente queimada, podia ver meus braços com enormes ferimentos vermelhos. Não havia mais pele neles, apenas a carne exposta e ferida. O tecido velho das roupas que uso estava colado em minha pele.
E a sede... ela ainda estava lá. Com meu corpo tentando se recuperar daqueles ferimentos, a sede já estava incontrolável. Então eu senti um cheiro doce, agradável. Ouvi as batidas de um coração humano. Meus olhos imediatamente encontraram a fonte de tais coisas: um garoto adormecido à margem daquele rio cavernoso. Eu não pensei.
Meu corpo, mesmo com todos os ferimentos, se moveu sozinho. Eu não era mais dona dele, assistia a tudo através dos meus olhos, mas eu não tinha mais uma consciência. Eu era apenas o monstro nojento e perverso que sempre fui. Um apagão. Quando voltei, seu sangue já estava em mim, e seu coração estava muito próximo de parar de bater. Diante dos meus olhos, todas as memórias esperançosas e mágicas da juventude. Mais uma vida que eu jamais poderia ter.
Eu larguei aquele corpo que agora jazia sem vida, lágrimas nos meus olhos. Eu odeio chorar. As lágrimas daqueles que são como eu não são normais, são sangue, puro sangue. E esse sangue é maldito, é ele que faz de mim essa monstruosidade. Toda vez que choro, sou obrigada a encarar mais uma lembrança do que sou.
Eu também odeio me alimentar, como já falei. Todas as últimas vezes que me alimentei foram assim: eu perdendo o controle do meu próprio corpo e tomando para mim a vida do primeiro que encontro. Como queria que meu corpo não sucumbisse a isso... Já tentei me amarrar, me aprisionar e não permitir que a sede tome conta, mas sempre que volto à consciência, percebo que consegui me livrar do que me segurava. Parece que nada pode conter a bestialidade que a abstinência de sangue causa em mim.
Era para eu estar morta, para finalmente ter recebido o descanso eterno. Mas aqui estou eu, mais uma noite, mais lembranças da minha maldição.
Mas não fazia sentido: eu não poderia ter escapado daquele lugar, e como havia um humano dentro da caverna? Não parece ser o tipo de local em que humanos entrariam. E como eu fui parar dentro daquela caverna?
Ainda com muitas dores, mas em plena autonomia de meus movimentos, comecei a olhar em volta, tentando encontrar respostas de onde eu estava e como eu poderia ter parado lá.
Não parecia haver nada lá dentro, apenas eu. Mas então, um canto à margem do rio me chamou a atenção: havia uma figura lá.
Eu me aproximei. Mesmo com meus olhos de vampiro, eu tinha dificuldade de enxergar aquela criatura. Chegando mais perto, vi que ela tinha uma altura padrão de um ser humano, talvez um pouco mais alta. A criatura tinha um corpo humano também, feminino, impecavelmente belo. Não era muito magro, mas curvilíneo, com seios fartos. Mas... sua pele era completamente preta. Não como a pele escura de pessoas negras, mas preta como uma pedra ônix. Ela tinha longos cabelos, igualmente pretos, que torneavam suas costas como uma capa aveludada.
Aquela... criatura olhava para mim, e foi através de seus olhos que eu entendi: era o mesmo anjo que vi em meio às chamas. Os olhos eram apenas duas orbes vermelhas, como duas pedras de rubi, mas eu sabia que olhavam para mim.
Por um momento, ao cruzar o olhar com ela, eu esqueci de tudo: da dor, da solidão, até mesmo dos meus ferimentos. A presença dela, ser assistida por ela, me dava uma sensação de completude, de calma, da qual talvez eu nunca tenha sentido
Ela segurava em sua mão um caderno, como se estivesse lendo algo. Eu reconhecia aquele caderno. Mas, ao me ver de pé e me aproximar dela, ela se levantou e veio em minha direção.
Se aproximou de mim e me olhou nos olhos. Foi quando eu percebi: seus rubis pouco a pouco tremeluziam e agora estavam se tornando olhos comuns. Pisquei algumas vezes para entender o que estava acontecendo, mas quando percebi, os olhos dela agora eram perfeitamente delineados, redondos, mas delicados, completamente normais, exceto pela cor de sua íris, que ainda carregava o tom vermelho-rubi.
Eu nunca havia visto criatura tão bela.
Ela era um pouco mais alta que eu, meus olhos alcançavam seus lábios. Levantei a cabeça, queria olhar em seus olhos. Aquele reluzente brilho vermelho me atraía, como se me levasse para uma existência muito mais intensa, mais colorida, do que minha vida até ali. Ela então se moveu, colocou sua mão em meu rosto.
A sensação de sua mão em meu rosto era dolorida devido à minha pele fragilizada, mas também era agradável. Seu toque era quente, mas não quente como o toque humano; era diferente, era confortável, me trazia... paz. E eu comecei a chorar de novo. Meu coração estava calmo, eu não me sentia sozinha, o calor dela preenchia todo o meu corpo.
Mas, quando tentei encostar nela, ela desapareceu. Seu corpo preto se fundiu à escuridão daquela caverna, e então não havia mais nada lá. Aquele lugar úmido e escuro agora era frio novamente. Eu estava na completa solidão mais uma vez.
Eu me aproximei do lugar onde ela estava com o caderno em mãos e foi então que percebi: o caderno era este mesmo diário que estou escrevendo. Ela estava lendo meu diário! Mas não só isso: ao lado, a caixa de metal onde havia guardado todos os outros estava lá também, aberta, com todos os diários revirados. Aquela criatura estava revirando a minha vida!
O que era tal criatura? Por que ela estava aqui e por que ela lia meus diários?
Eu preciso encontrá-la novamente. Eu preciso... de seu toque, do calor que ela trouxe para mim.
Mas minha visão está ficando embaçada de novo. Eu vou desmaiar de dor. Eu vou... me deitar ao rio mais uma vez e aguardar que essas feridas se curem.
E, então, eu vou encontrá-la mais uma vez.
Oh, belo anjo sombrio! Toque-me e me encha de calor mais uma vez.
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