Diário — Dia 72588... eu acho

 Eu realmente não sei há quantos dias estou dentro dessa caverna ou há quantos dias estou adormecida. Eu me deitei no rio novamente, deixei que a água gelada aliviasse a dor, quando acordei, minha pele já estava completamente curada, não havia mais sinais de queimaduras. A correnteza do rio levou embora os pedaços de tecido grudados em minha pele, agora me visto apenas com maltrapilhos, os restos da roupa já decadente que usava. 

Eu não lembro quando foi a última vez que troquei de roupas, eu estava usando um vestido que eu acredito que era azul, agora está tão imundo que está completamente preto, nem mesmo a água do rio tratou de lavar essa sujeira. Eu acho que esse vestido estava entre as roupas que levei embora quando fugi de minha casa, se me lembro bem, era a última moda em 1812, foi um presente de... alguém especial, não lembro quem era. Mas foi por isso que eu trouxe. 

Em que anos estamos? Eu escrevo diários há 72588 dias, mas... eu estou certa de que houve dias e dias, talvez até mesmo anos, que me mantive adormecida. 

Eu preciso sair dessa caverna, eu preciso saber onde estou. Mas essa caverna parece segura, mais segura que minha velha cabana, o sol não me alcança aqui. Essa caverna será meu novo esconderijo. 

E o anjo... eu quero vê-lo de novo. Como se chama por anjos? Quando eu era mortal, estive em muitas aulas da escola dominical, eu acho que consigo me lembrar de algumas rezas. Será que eu consigo chamá-lo se rezar? Será que um anjo atenderia o chamado de um monstro como eu? 

Eu tenho muitas dúvidas, mas primeiro, vou sair daqui. 

Consegui sair! Andei seguindo o fluxo do rio até que encontrei a cachoeira onde o rio despeja suas águas, é uma caverna que se forma no topo de uma montanha, o que torna aquele humano lá dentro ainda mais estranho. 

Eu sei onde estou, continuo na mesma floresta em que minha cabana ficava, esse rio é o mesmo rio que conhecia, apenas uma outra parte dele. Quem diria que ele partia das profundezas de uma caverna?

Mas quando sai, eu não encontrei o frescor do ar da floresta. O ar está tomado por fuligem e fumaça, o céu está tomado por aquelas máquinas metálicas voadoras dos mortais, elas despejam água em cima de um incêndio intenso que se forma na floresta. O barulho me atordoa, como os humanos conseguem conviver com essas máquinas tão perturbadoras? Acima delas giram em supervelocidade lâminas capazes de decapitar qualquer ser vivo, e sem há mortais dentro delas, ao menos 2 em cada uma delas. Quando foi que os humanos perderam o apreço por suas vidas a ponto de se tornarem capazes de entrar em máquinas como essa?

E o incêndio agora se alastra por uma boa porção da floresta, a fumaça alcança os céus de forma imponente enquanto as chamas formam gigantes de fogo. O ar está denso, sufocante, até mesmo eu que não preciso respirar me sinto sufocada nessa floresta.

Mas eu não tenho direito de reclamar, eu sei o que causou esse incêndio...

Eu me aproximei das chamas e vi que elas se formavam aos arredores da minha antiga cabana... fui eu que iniciei ele. E agora vejo inúmeros animais inocentes que morrerem nas chamas. Era para ter sido eu, eu deveria estar morta nela. Me perdoem, vidas inocentes, mãe Gaia, eu não queria ferir vocês... a monstruosidade em mim não pensou nas consequências que um incêndio em meio a floresta poderia trazer. Eu só queria morrer. 

Ah, como eu sou uma criatura maldita. Tantas vidas perdidas pelo meu ato enquanto eu ainda estou aqui, viva. Eu deveria pular nessas chamas e deixar que elas me levem. Isso séria o correto, séria a solução para todas as coisas.

Mas eu estou com medo... e eu não sei de onde vem esse medo. Eu não deveria ter medo de morrer se não há nada pelo que viver. Mas eu estou apavorada. 

O anjo... Aquela criatura da outra noite, ela pode me dar respostas, certo? Me falar o que a morte guarda para um monstro amaldiçoado como eu. Anjos devem saber esse tipo de coisa. 

Eu vou sair daqui, de perto desse incêndio e clamar por ele. 

Eu... não sei o que falar. Ou escrever.

Mas eu sinto que preciso escrever ao menos para organizar meus pensamentos. 

Vamos começar pelo começo. Eu me ajoelhei no chão e comecei a rezar, fiz uma reza ao meu anjo guardião. É uma reza muito antiga, que aprendi quando era criança. Eu não sabia se aquela criatura era meu anjo guardião, mas essa era a única reza para anjos que eu conseguia me lembrar. 

Eu repeti aquela reza inúmeras vezes, eu me tornei tão obcecada por isso que comecei a declamar as palavras da reza de uma forma muito mais rápida do que qualquer humano seria capaz. Eu devo ter feito a reza ao menos 100 vezes. As palavras me colocaram em uma espécie de transe, eu sentia minha consciência de dissolver no ar e ouvir apenas as palavras serem proferidas da minha boca.

Eu não era mais capaz de desistir, eu estava em completo estado de gnose, eu era capaz de proferir aquela reza quantas vezes fosse necessária, até que o sol surgisse no horizonte e me queimasse. Mas então eu senti uma presença que me tirou desse estado completamente. 

Abri os olhos e lá estava ela, em todo o seu esplendor. Seus olhos agora eram os olhos comuns com a íris vermelha, ela me olhava, com uma expressão confusa. 

Eu me levantei num susto, e então... outra coisa aconteceu. Seu corpo inteiro tremeluziu, em um momento, enormes asas se projetaram em suas costas, talvez por apenas 1 segundo isso tenha acontecido, mas então seu corpo começou a mudar, não era mais completamente preto. Sua pele começou a assumir um tom comum, de pele negra, seu cabelo agora não parecia mais apenas um manto, era um cabelo normal, preto, com os fios lisos e brilhosos que acompanhavam suas costas até seus joelhos. Até mesmo em seus seios, era possível ver os mamilos se formarem em um tom mais escuro que o resto da pele. A minha frente, agora parecia ter uma mulher nua completamente comum, mas incrivelmente bela. E a única coisa que destoava de sua aparência normal, eram seus olhos vermelhos. 

Ela sorriu para mim, seus dentes eram brancos, perfeitos. 

Eu estava completamente hipnotizada por ela, minha mente, mesmo imortal, estava com dificuldade de processar do que eu estava diante. Mas então mais uma coisa aconteceu... Ela falou e... nós conversamos. Eu vou tentar transcrever o que falamos. 

— Essas rezas humanas não servem para me chamar. — Ela falou, sua voz era suave, tranquila, transmitia uma enorme paz. Ao ouvi-la, meu coração começou a bater muito forte, eu nem sequer lembrava que tinha um coração que batia, e agora ele batia tão forte que conseguia até mesmo ouvi-lo. 

Eu fiquei completamente muda, eu não sabia como reagir a aquela voz. 

— Eu queria te ver de novo. — Depois de muito tempo, respondi a ela. Eu me assustei com o som da minha própria voz. 

Ela sorriu de novo. Que sorriso lindo, que sorriso encantador. Eu poderia ficar lá, completamente parada, encantada com a beleza dele. 

— O que você é? — Eu perguntei com a voz tremula. 

— Sua mente humana é fraca demais para compreender o que eu sou. — Ela respondeu, sua voz me trazia conforto ao mesmo tempo que suas palavras me causavam um sentimento estranho, talvez receio. 

— Eu não sou humana, você sabe. — Respondi, pela primeira vez em todos os meus anos de vida, parecia uma coisa boa não ser humana. 

— Eu sei que não é. Mas você nasceu com a mente humana e poucas coisas são capazes de mudar isso. E esse presente que você recebeu, que transformou você em algo não-humano, não é uma delas. Sua compreensão ainda é tão limitada quanto a de um humano. E você, minha querida Eris, tem uma mente terrivelmente humana, mais humana do que muitos como você têm. Seu corpo pode ser imortal, mas você clama como um mortal. — Ela agora olhava profundamente em meus olhos, eu não conseguia sentir qualquer outra coisa além de conforto ao olhar para ela. E algo mais... um sentimento que não conheço, que faz meu peito ficar aquecido só de lembrar dela. 

— Você me traz calor, me traz conforto. Eu preciso desse calor novamente, por favor. Me permita entender o que você é, me permita ficar perto de você. Pelo menos mais um pouco, pelo menos mais uma noite. — Eu comecei a implorar. Transcrevendo esse diálogo aqui nessas páginas está me fazendo vão o quão vergonhosa foi minha súplica. 

— Não agora, não aqui. Você ainda está fraca. Você precisa cuidar de você. Nós costumamos gostar de acordos, então vamos fazer um acordo? Você cuida de você mesma, se torna a criatura forte e bela que você deveria ser e, quando isso acontecer, eu voltarei. E eu prometo te dar meu calor novamente. — Ela falou, em sua volta parecia se projetar um tipo de aura, vermelha e dourada. 

— Por seu calor, por seu conforto. Eu faço qualquer coisa que me pedir, eu serei sua serva... Eu farei isso, e aguardarei seu retorno. — Respondi e, então, a aura que envolvia ela, agora parecia envolver a mim também.

Ela sorriu e em sua cabeça eu juro que eu vi dois enormes chifres se projetando. Chifres que começavam grossos na base, em sua cabeça, então ela se retorcia enquanto iam se tornando mais finos. As pontas se formavam de uma forma que era capaz de perfurar qualquer coisa. Mas a imagem dos chifres aconteceu como a imagem das asas, por apenas um segundo e então desapareceu. 

— Então temos um acordo. Quanto mais rápido você se cuidar, mais rápido eu voltarei. — Ela falou, enquanto sua imagem agora voltava a ser aquele ser completamente preto e então sua forma começava a se fundir a escuridão. 

— ESPERA!! Um nome. Pelo menos me diga o seu nome. — Falei gritando, desesperada por uma migalha de conhecimento sobre ela. 

—Eu tenho muitos nomes. Olhe para mim, qual nome você ouve em sua mente? — Sua forma voltou a se solidificar, mas agora era completamente a figura preta. 

Não só a figura preta, agora seus chifres estavam completamente visíveis, eles pareciam ser feitos de osso, o tom amarronzado claro deles destoava da sua pele completamente preta. E, em suas costas, asas de projetavam. Mas diferente do que estamos acostumados a ver em descrição de asas de anjos, as asas dela não era feitas de plumas. Na verdade, as asas não eram feitas de nenhum material, elas eram pura luz que se projetavam e se organizavam em forma de um enorme par de asas.

Eu olhei para ela, para aquela figura que se revelava diante de mim e um nome veio a mente. 

— Seere. — Falei, incerta de porque esse nome veio a mim. 

— Então de todos os meus nomes, foi esse que veio a você. Então está certo, você está certa. Meu nome é Seere. — Ela falou enquanto desaparecia na escuridão. 

Então eu voltei a sentir o cheiro da floresta queimando, voltei a ouvir os barulhos dos monstros de metal dos mortais. E eu estava sozinha, de novo. 

Eu caí no chão, deitei-me na grama da floresta e comecei a chorar como uma criança. Eu não entendo por que chorei dessa forma, mas a partida de Seere foi como se algo tivesse sido arrancado de mim. Meu coração doía muito mais do que qualquer ferimento de queimadura tivesse doído nos últimos dias. Mesmo agora, que estou mais calma, ainda sinto essa dor. 

Eu havia feito um acordo com ela, mas o que esse acordo significava? O que ela queria dizer com “me cuidar”? 

E agora que penso, ela me chamou de Eris, ela sabe o meu nome. 

E agora eu estou aqui, de volta a aquela caverna. A manhã estava próxima e eu precisava me esconder. 

Seere... O que é você? 


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