Diário – Dia 72586

Há quanto tempo escrevo diários? Por que eu os mantenho? Eu acho que não consigo nem mesmo contar quantos anos são.

Eu venho escrevendo nestes diários todo dia, eu acho... Eu já não sei onde os dias, ou as noites, começam ou terminam. Recolho-me ao meu próprio buraco quando vejo o céu noturno começar a alcançar tons roxeados; fujo como uma covarde.

Mas não sei dizer por quanto tempo durmo, pois apenas no sono encontro paz. Morpheus me abraça como uma criança perdida, e desejo jamais deixar seus braços. Porém, sou amaldiçoada a abrir meus olhos novamente e, todas as vezes que o faço, o mundo parece diferente. Ele soa diferente, ele cheira diferente; até mesmo o tintilar das folhas parece mudar de tom. O mundo poderia mudar tanto em apenas um dia?

Diário — Dia 72587

 Eu... sobrevivi. Eu ainda estou sem acreditar no que aconteceu. Vou tentar descrever tudo.

Aquela enorme criatura de chamas apareceu diante de mim, e tudo se apagou logo em seguida. Eu achei que finalmente havia fechado os olhos para sempre. Mas... aqui estou eu, escrevendo em um diário todo chamuscado mais um dia.

Em algum momento, eu voltei a recobrar minha consciência. Primeiro, eu senti algo gelado percorrer meu corpo. A sensação era gostosa. Minha pele estava ardida e terrivelmente dolorosa, mas aquela coisa gelada parecia trazer alívio para a sensação.

Era água. Eu estava dentro de um rio. A água era fresca e limpa, as pedras em minhas costas pareciam ter sido propositalmente colocadas para me acomodar como uma cama.

Eu abri os olhos. Eu não estava no rio que conhecia, próximo à cabana. Estava dentro de uma caverna, profunda; eu não conseguia nem mesmo ouvir o vento do lado de fora no ponto em que estávamos.

Diário — Dia 72588... eu acho

 Eu realmente não sei há quantos dias estou dentro dessa caverna ou há quantos dias estou adormecida. Eu me deitei no rio novamente, deixei que a água gelada aliviasse a dor, quando acordei, minha pele já estava completamente curada, não havia mais sinais de queimaduras. A correnteza do rio levou embora os pedaços de tecido grudados em minha pele, agora me visto apenas com maltrapilhos, os restos da roupa já decadente que usava. 

Eu não lembro quando foi a última vez que troquei de roupas, eu estava usando um vestido que eu acredito que era azul, agora está tão imundo que está completamente preto, nem mesmo a água do rio tratou de lavar essa sujeira. Eu acho que esse vestido estava entre as roupas que levei embora quando fugi de minha casa, se me lembro bem, era a última moda em 1812, foi um presente de... alguém especial, não lembro quem era. Mas foi por isso que eu trouxe. 

Em que anos estamos? Eu escrevo diários há 72588 dias, mas... eu estou certa de que houve dias e dias, talvez até mesmo anos, que me mantive adormecida. 

Eu preciso sair dessa caverna, eu preciso saber onde estou. Mas essa caverna parece segura, mais segura que minha velha cabana, o sol não me alcança aqui. Essa caverna será meu novo esconderijo. 

E o anjo... eu quero vê-lo de novo. Como se chama por anjos? Quando eu era mortal, estive em muitas aulas da escola dominical, eu acho que consigo me lembrar de algumas rezas. Será que eu consigo chamá-lo se rezar? Será que um anjo atenderia o chamado de um monstro como eu? 

Eu tenho muitas dúvidas, mas primeiro, vou sair daqui.